sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Fernando Pessoa - O livro do Desassossego

Devo confessar que nunca fui grande leitora das suas obras, mas ultimamente as suas citações, pensamentos, reflexões, etc., tem inundado os meus mails, as minhas leituras... a minha cabeça.
Depois de ler uma série de extractos, citações e pensamentos retirados do Livro do Desassossego (que excelente título para uma obra, como me relaciono com ele e com o tema), aqui vos deixo alguns excertos, com os quais me identifico vivamente (especialmente com o último):

A Vida deve Ser um Sonho que se Recusa a Confrontos
Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das vir­tudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.

Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos oq ue em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.
Disse Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos - não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos.
A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.

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Sonhos Prometedores
O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra. Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse «Conhece-te» propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.

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Sonhos sem Ilusões
Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.

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Nenhum Problema tem Solução
Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. Resolvemos bruscamente, com o sentimento, os problemas da inteligência, e fazemo-lo ou por cansaço de pensar, ou por timidez de tirar conclusões, ou pela necessidade absurda de encontrar um apoio, ou pelo impulso gregário de regressar aos outros e à vida.
Como nunca podemos conhecer todos os elementos de uma questão, nunca a podemos resolver.
Para atingir a verdade faltam-nos dados que bastem, e processos intelectuais que esgotem a interpretação desses dados.

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Sabedoria é não Querer Compreender
Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto, onde nada de activo intervém, onde por fim até a nossa consciência de nós mesmos se atola num lodo - só aí, nesse morno e húmido não-ser, a abdicação da acção competentemente se atinge.
Não querer compreender, não analisar... Ver-se como à natureza; olhar para as suas impressões como para um campo - a sabedoria é isto.

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Ver Claro é não Agir
O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.

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Nunca Cultives o Absoluto nem o Excesso
Nunca cultives coisas absolutas, como a castidade absoluta ou a sobriedade absoluta: a maior força de vontade é a do homem que gosta de beber e se abstém de beber muito e não a daquele que não bebe de todo. O movimento antialcoólico é um dos maiores inimigos da vontade própria e do desenvolvimento da vontade. Castrar um homem «controlará» certamente os seus impulsos sexuais. Castrar a sua alma também fará o mesmo. A dificuldade é abster-se. Deves criar um desejo de beber e de fumar e então fumar e beber moderadamente. Graças a este método, não só desenvolverás a tua vontade decisivamente, obrigando-a a impor limites aos teus impulsos, que é a função própria da vontade (e não a eliminação dos impulsos), mas também extrairás o maior prazer possível de beber ou de fumar, pois a Natureza concebeu as coisas de um modo tal que o maior prazer vem depois do maior poder, a temperança, e o sinal da normalidade é este.

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Escrever é Esquecer
Escrever é esquecer.
A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

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