Tudo começou quando chegou de férias...
Ao chegar ao aeroporto naquela manhã teve um novo choque de realidade, que a arrancou daquele mundo cor-de-rosa em que ela insistia em viver.
Ela sabia que ele estava a trabalhar, que tinha reuniões, mas algo dentro do seu coração sempre tinha sonhado que ele lhe dizia isso, mas estaria ali, à sua espera, com aquele sorriso radioso, uma rosa e um beijo apaixonado, como anteriormente.
Mas não, efectivamente estava sozinha e depois de levantar as malas foi apanhar o comboio para casa.
Enviou-lhe uma mensagem a dizer que tinha chegado e qual o comboio que ia apanhar e seguiu para casa, que estava cansada, transpirada e queria descansar e tomar um banho que lhe lavasse da alma a tristeza de estar sozinha.
No seu coração alimentava ainda a esperança que ele a fosse buscar à estação, mas efectivamente o dia devia estar muito preenchido e na estação apanhou o táxi para casa.
Não queria estar a pensar muito, pois a realidade é que se ela estava de férias ele não estava, mas algo lhe dizia que as coisas não eram tão idílicas como pareciam e que algo estava mal.
Eram aqueles pequenos sinais de alerta, mas que ela sempre escolhera ignorar, atribuindo tudo isso ao seu romantismo exacerbado e exagerado.
E desta vez não seria diferente, pensou ela enquanto apanhava a chave e entrava em casa!
Ele chegou a casa às 18, cansado, mas mais apaixonado que nunca e lamentando não ter podido estar com ela quando chegara.
Tal como tantas vezes antes, ela não teve coragem de lhe dizer que queria era estar com ele, por isso saíram e foram a um evento no clube, onde ele queria mostrar a namorada... E ela aguentou de cara alegre aquelas 2h de conversa numa língua que ela não entendia e no meio de pessoas que não lhe diziam nada.
Mas o ar radiante dele compensava tudo isso, iludia-se ela, mais uma vez.
O grande "sinal" de que algo tinha mudado, pelo menos para ela, chegou na noite seguinte, véspera do seu aniversário.
É certo que ela sempre lhe tinha dito que não ligava a isso, que já tinha passado os 30 e que aniversários eram coisa de criança.
Claro que, para variar, o que ela dizia era uma coisa, o que sentia era outra, mas ela sempre achara que ele sabia perceber e entender isso.
E especialmente tendo em conta o dia que era!!!
Tinham combinado as coisas para esse dia, mas ele tinha de arranjar maneira de destruir os seus sonhos e ilusões.
Deitada na cama, sem conseguir dormir, na sua cabeça ecoavam as palavras que ele, inocentemente, tinha dito:
- Amanhã, em vez de ires cedo comigo, porque não ficas a dormir e depois apanhas o comboio para lá? Eu não posso almoçar contigo porque tenho uma reunião, mas posso vir contigo e depois jantamos com os miúdos.
Apesar de saber que ele tinha dito isso com a melhor das intenções, pensando nela e que poderia descansar... tudo o que lhe vinha à cabeça era:
- Mas será que ele não sabe que a estação de comboios fica a mais de 40 minutos a pé e que nem sei qual o autocarro para lá? O que vou ficar a fazer em casa sozinha? Porque nem consegue almoçar comigo nos meus anos, dia dos namorados? O que se passa?
Sabia que estava a ser injusta, infantil mesmo, mas não conseguia tirar isso da cabeça e com essas palavras a ecoarem ela não conseguia encontrar o sono.
Era o sinal e ela não o devia ter ignorado, devia ter dito o que sentia, a sua revolta com as palavras dele, mas sentindo que estava a ser infantil, optou por se calar e guardar a mágoa no fundo do coração.
Na manhã seguinte levantou-se cedo e foi buscar as prendas dele, cuidadosamente escondidas, pois mesmo sendo o aniversário dela, era o dia deles e tinha de ser celebrado!
Acordou-o:
- Amor, vi isto e não consegui resistir, pois era a tua cara!!!
Entregou-lhe o postal, cuidadosamente escolhido na véspera na papelaria da esquina, que tinha uns postais deliciosos, o peluche do seu animal preferido, e que ele coleccionava há anos, onde tinha enrolado o relógio lindíssimo que lhe tinha trazido.
O seu ar feliz e surpreendido foi a melhor prenda daquela manhã, apesar de ele ter conseguido estragar o ambiente levantando-se e dizendo:
- Amo-te. E adoro o meu relógio! Mas agora descansa e dorme. Depois vais lá ter e eu apanho-te para virmos jantar com os miudos!
E começa novamente o seu diálogo interior, cego, surdo e mudo para o exterior do seu coração:
- Mas o que se passa???
- Será que ele não vê que já estou acordada e que quero ir com ele e aproveitar os momentos que temos juntos?!
Todas estas questões lhe atravessam a cabeça, mas sem energia para mais nada volta-se a deitar, vendo pela janela o pequeno lago com as suas grandes árvores e pensando que o dia, que ele tinha sonhado ser passado a dois recheado de pequenos gestos, ia ser longo e solitário.
Quando desce, já a meio da manhã, vê que ele tinha estado a enfeitar a sala com cartazes de parabéns e pequenas decorações festivas.
Mas nesta altura a desilusão já se tinha apoderado de tal maneira que nada a animava e, num gesto de raiva, arrancou tudo e arrumou cuidadosamente!
A única coisa que ela queria era passar aquele dia com ele, eram pequenos gestos românticos e... nada daquilo era um gesto romântico!
Sim, porque na sua cegueira, nos seus sonhos e ilusões desfeitos, nada daquilo era considerado romântico.
E daí em diante o dia só piorou e, no fundo, sentia que a culpa era toda sua, pois se tinha dito que não se importava com nada, que não era preciso nada de especial, sempre tinha sonhado que ele ia compreender, que ele ia saber que ela adorava pequenos gestos e atenções nesse dia.
Por isso como o podia culpabilizar de ser cego e surdo?
Simultâneamente, não tinham falado tantas vezes dos outros anos, dos outros namorados e das suas "falhas "naquele dia?
Não lhe tinha ele prometido que nunca seria assim?
De tarde o seu telefonema, mais uma camada de "boa disposição" para o aniversário mais solitário de que se recordava:
- Amor, estou atrasadíssimo, as coisas estão demoradas, apanho os miúdos e encontramo-nos no Mac? Ainda bem que não vieste, pois acho que não conseguia dar-te boleia... Amo-te muito e PARABÉNS!
Fabuloso!!!
Mesmo o que se sonha para passar o dia de anos.
O monstro estava completamente solto, estava cega de tristeza, dor, desilusão e só lhe apetecia agarrar nas malas e ir embora.
E por uma coisa tão pequena!!!
Lá se encontraram ao fim do dia e foram ao Mac, e depois regresso a casa, deitar os miúdos e "relaxar" na sala, enquanto ele procurava casas na Internet.
Surpresas? Nada!
E sentada no sofá ela não conseguia deixar de olhar para ele e pensar porque é que será que ela tinha de viver sempre no seu mundo de fantasia e não conseguia viver no mundo real?
Ele olhava para ela sem perceber o que se passava e ela, cada vez se afundava mais no seu silêncio, na sua decepção, na sua tristeza de perceber que, mais uma vez, todas as conversas, todas as coisas faladas entre eles, todas as suas ilusões e devaneios românticos.... tinham caído em saco roto.
Tinha imaginado tantas possibilidades românticas com que ele a surpreenderia... um bolo surpresa no Mac, com os miúdos, ou uma rosa, um postal, ... algo!!!
Mas não.... o dia tinha sido muito ocupado para que ele desse importância ao aniversário que ela escolhera passar com ele.
- Vou-me deitar!- disse-lhe ela passado um bocado, derrotada pela ausência de uma prenda, um gesto simbólico... algo!!!
- Já?! Ok, eu já vou! - a surpresa na cara dele demonstrava que não se apercebia de nada, e isso enfurecia-a tanto!
Despiu-se e deitou-se, triste, desiludida, devastada com a forma como o dia tinha passado, ela que tinha sonhado tanto com aquele dia.
Ele subiu e cuidadosamente sentou-se ao lado dela, estendendo-lhe um pequeno embrulho, que ela nem precisou de abrir para saber o que era.
- Nem me deixaste dar-te a tua prenda de anos! - diz-lhe ele, como quem pede desculpa.
Sem sequer a abrir, agarra nela e coloca na mesinha.
- Obrigada! - diz. controlando-se para que a dor e desilusão não transpareçam, pois afinal ele não sabia o quanto a tinha desiludido, não só ao longo do dia, mas especialmente com aquela prenda!
- Não abres?
Fazendo um esforço, lá abre a prenda e, surpresa, era algo que já tinha (afinal era coleccionadora).
Era demais para as forças dela!!!
Por mais que tentasse, por mais que quisesse ser justa... aquela prenda era demais!
Sempre tinha dito que ele a conhecia melhor que qualquer outra pessoa, tinham falado tanto, ele devia conhecer tão bem e, aparece-lhe com uma prenda que qualquer pessoa que não a conhecesse podia ter comprado?
Onde estava aquele homem das rosas no aeroporto? Do DVD de lareiras e do tapete felpudo no chão?
Onde estava o namorado que a tinha surpreendido com uma pulseira antes de ela ir de férias, para que ela a usasse a pensar nele?
- Não gostas? Já tinhas? - pergunta ele, ansioso com a sua prenda.
- Gosto, e não tinha. - responde, tentando fazer uma cara alegre, mas as forças escapavam.
- Mas o que se passa? O que tens? - pergunta ele, sabendo que algo se passa.
- Gostava de ter passado mais tempo contigo, queria ter podido organizar as coisas para passarmos o dia juntos, mas como disseste que não fazia mal, aproveitei para avançar as coisas no trabalho.
Estas palavras ainda vieram reforçar mais a sua convicção que algo ia mal, pois sabia que lhe tinha dito que não fazia mal e escusava de estar a faltar ao trabalho por causa dela, mas ele esperava o quê?! Que ela lhe dissesse que faltasse ao trabalho para passarem juntos o dia de anos dela?! Isso não se pede, faz-se, se houver interesse.
- Paulinha, diz-me o que tens que estou preocupado. - repete ele com carinho.
E na cabeça dela desfilavam as prendas que tinham falado milhares de vezes, os gestos românticos que tinha idealizado... e a realidade do que tinha recebido e do dia que teve.
Não a interpretem mal, não é uma pessoa materialista! Mas era o dia deles E o dia dos anos dela!
- De todas as prendas que me podias ter dado, escolheste a que menos significado tem para mim, pois é a que qualquer pessoa que não me conheça pode dar, sabendo que iria sempre gostar! - responde ela, triste e querendo estar sozinha.
- Não digas isso! Nem sabes o que corri para a encontrar, porque é algo que coleccionas. - responde ele, começando a perceber a sua tristeza.
- Andei de uma ponta à outra para te encontrar isto, e só hoje é que percebi que podia encontrar em qualquer lado, mas acredita que não sabia e que até falei com amigos do comité olímpico - continua ele, tentando explicar o porquê.
- Sei que falhei em não te ter dado nada no nosso dia, principalmente sabendo que odeias prendas "duplas" e depois da prenda que me deste e que eu adoro, mas não conseguia pensar em nada e estava com pouco tempo - continua ele, cada vez se "enterrando" mais e cada vez mais infeliz!
Neste ponto ela já estava de rastos, sentia-se injusta e ingrata por estar desiludida com aquele dia, com aquela prenda, com o facto de ele a conhecer tão mal que nem percebia que ela não queria uma prenda "pedida" ou um dia organizado por ela, mas que queria surpresas, romance, mistério.
E acima de tudo não queria discutir com ele, nem queria ver a tristeza nos olhos dele, pois ele não tinha a culpa de ela ser assim.
- Está tudo bem, foi só a surpresa. Fiquei triste com a prenda porque esperava algo diferente, mas percebo que me quiseste surpreender e o trabalho que tiveste. Não ligues, deve ser da idade.
A tristeza dele, ao perceber a dor dela, foi algo que a magoou mais do que qualquer acção ou pensamento que tivesse tido, pois não conseguia desviar de si a ideia de que estava a ser extremamente injusta com ele!
Conversaram durante um grande bocado, ele explicando o trabalho a encontrar a prenda, ela escutando tudo e tentando não deixar transparecer a dor que sentia por ter finalmente compreendido que a vida real é muito diferente da vida que se sonha.
Quando finalmente adormeceu, ela continuou acordada por muito tempo e, pela primeira vez desde que namoravam, só pensava no quanto queria estar em casa, junto dos seus, e no quanto se sentia sozinha ali.
Hoje, sentada em frente ao mar, recordando este episódio, ela só pensava que devia ter percebido que as coisas iam acabar, pois ficou claro que ele nunca a compreenderia, nem ela seria capaz de viver aquela vida de aparente "normalidade".
E por mais que falassem de tudo, ele nunca perceberia que há coisas que uma mulher não diz ou pede, mas que sonha que a surpreendam com elas!!!!
Especialmente se essas coisas dizem respeito a gestos românticos, datas importantes, eventos marcantes!